Ser Estado

Louis XIV, rei da França apelidado de O Rei Sol, tamanho seu poder e dono do reinado mais longo da história da Europa, afirmou que “l´état c´est moi” (o Estado sou eu) e sintetizou como ninguém o significado do absolutismo, isto é, o sistema de governo em que o soberano concentra em suas mãos todo o poder do Estado.

Supor tamanho domínio rendeu matéria-prima para muitos escritores, dentre eles William Shakespeare, autor de Macbeth e Rei Lear, duas tragédias em que explora o peso do fardo que o poder representa.

Macbeth, ambientada na Escócia, conta a história de um capitão que descobre através de três bruxas que um dia será rei, mas não fará sucessores, enquanto seu companheiro Banquo, apesar de não vir a ser rei, terá filhos que serão. Movido pela ganância de encontrar com seu futuro, Macbeth se envolve numa conspiração para antecipar sua ascensão ao trono e, temendo que o companheiro seja tão ganancioso quanto ele, o persegue, tornando-se um rei tirano.

Rei Lear se passa na Bretanha, e conta a história de um bom e velho rei que, visando garantir a paz após sua morte, decide dividir seu reino entre as filhas Goneril, Regana e Cordélia. Casadas, Goneril e Regana se rasgam em declarações ao pai, mas Cordélia, solteira, prefere ser comedida em suas homenagens. Tomando a contenção da filha por ofensa o rei a deserda, entregando seus domínios às duas mais velhas que se encarregarão de sustentá-lo até que ele parta. O que ele não imaginava é que para as filhas ele será a partir de então um estorvo e a paz que ele pretendia se torna impossível diante do desejo de ambas por mais poder.

Tais tramas nos dias de hoje só podem existir mesmo na ficção, pois desde Louis XIV e Shakespeare o mundo mudou muito, as repúblicas se fortaleceram e a democracia foi adotada na maior parte do globo. No Brasil, por exemplo, vivemos a experiência democrática presidencialista, ou seja, a cada quatro anos um Presidente é eleito para assumir as funções de Chefe de Governo (tomada de decisões) e Chefe de Estado (personificar o Estado).

Mas nem todos os países funcionam assim: em alguns o Presidente divide suas funções com o Primeiro-Ministro (eleito pelo legislativo), em outros o Primeiro-Ministro acumula as duas funções como o Presidente, e, em alguns casos, a função de chefe de Estado pode estar a cargo de um outro eleito ou mesmo de um monarca, como acontece com Reino Unido, Suécia e Japão, por exemplo.

Não importa o sistema adotado, o Estado-nação sempre estará representado por alguém. Isso ocorre porque o Estado é uma ficção jurídica nascida quando estão presentes três fatores: povo, território e soberania. E esta ficção precisa ser personificada por uma pessoa, temporária ou permanentemente, por eleições diretas, indiretas ou até mesmo por tradição hereditária.

Quando uma pessoa é investida como Chefe de Estado ela é mais do que alguém que viaja em nome deste Estado, ela é a pessoa que o personifica. Louis XIV tinha razão, o Estado se torna a própria pessoa, e isto exige um grau de dedicação e comprometimento difícil de dimensionar, seja por alguns anos para os que são eleitos, seja por toda a vida, durante setenta anos ou mais, como acontece com os monarcas.

Não é prerrogativa exclusiva dos monarcas, contudo, estar à frente de um Estado cruel. Há países presidencialistas e parlamentaristas que estão em guerra, que seguem massacrando os povos originários da terra colonizada, há países que incitam guerras que não são suas apenas para manter sua hegemonia, há países que esquecem as razões que lhe deram origem e tornam-se genocidas.

Por isso ser um Estado é coisa que pede envergadura. Macbeth tornou-se paranoico, tinha visões daqueles que assassinou, e sua esposa alucinava-se em delírios com as tramas arquitetadas; já Rei Lear foi um tolo, achou que o amor que as filhas declararam a ele se estenderia a seus domínios, errou ao não antever sua cobiça. Pouco antes da trama se encerrar uma personagem diz:

“Sabedoria e bondade aos vis parecem vis. A imundície adora-se a si própria.”

Não importa a forma, o poder pretendido sempre encontra quem melhor o represente.

Autora

Natural de São Paulo, é graduada em Direito, História e atua como Revisora.

Feminista em construção, usa sua página no Instagram para compartilhar experiências de leitura e vida.

É colunista do portal Olhar para dentro e do site <commusica.com.br> e integra o Coletivo Escreviventes de escritoras. No Medium publica crônicas intimistas. Tem textos em coletâneas e revistas literárias.

Nas redes é @moniquebonomini e sua produção pode ser encontrada em linktr.ee/moniquebonomini

Publicado por Monique Bonomini

De São Paulo. É formada em Direito e História. Atua como revisora e com leitura crítica. Colunista da página Olhar para Dentro e integrante do Coletivo Escreviventes de escritoras.

2 comentários em “Ser Estado

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