Para Aristóteles “a arte imita a vida”, mas para Oscar Wilde, escritor irlandês, “a vida imita a arte mais do que a arte imita a vida”.
Em se tratando de literatura, além de entreter, ela também tem o papel de provocar reflexões, instigar nossa criticidade. A arte pode ser deleite e ainda assim causar incômodo, um papel que a literatura cumpre bem ao produzir alegorias da vida real.
Publicado em 1955, Lolita, de Vladmir Nabokov, foi um destes livros que chocou o público com sua temática, pois o protagonista, Humbert, é declaradamente pedófilo. Ele afirma sua preferência por meninas na casa dos nove aos catorze anos e questiona sua própria sanidade.

A trama se desenrola com Humbert narrando como se apaixonou por Dolores, de doze anos, a quem apelidou de Lolita e toda a aventura amorosa e sexual vivida com ela. No livro, Lolita não é uma criança qualquer: ela é uma ninfeta, isto é, uma pré-adolescente erotizada, que teria certa intencionalidade nas paixões que provoca.
Apesar do choque causado, o livro, um estouro de vendas, virou um filme que acabou reforçando no imaginário coletivo a ideia da Lolita provocante, escalando uma menina de dezesseis anos para o papel e explorando a trama com uma dose de incompreensível humor.
Escrito em primeira pessoa, Humbert confessa seus arroubos passionais e obsessivos por Dolores, que o levaram a casar com sua mãe e assumir o papel de padrasto para ter mais acesso à menina.
É ele dizendo que, apesar de ter premeditado sedá-la, acabou sendo manipulado e até extorquido pela garota de doze anos. No melhor estilo Dom Casmurro, o narrador parece tentar nos convencer de que nada era tão ultrajante, afinal ele estava apaixonado e tinha certeza de que era correspondido.
A imagem de Lolita é esgarçada a tal ponto que, ao descrevê-la mais velha, o narrador a apresenta decadente, sem refletir mesmo que por um breve momento sobre seu papel diante da situação dela.
Muito embora seja um livro desconcertante, o fato é que ele cumpre um papel importante na leitura do mundo. Afinal, para a arte não deve existir um tema tabu ou questões morais que impeçam seu desenvolvimento. O diálogo com o público é quem estabelece sua relevância e é aí que arte e vida se põem a dançar. Cabe a nós enxergar quem conduz a dança.
Lolita ficou pop. Mesmo sem ler o livro ou assistir aos filmes, qualquer um entende o que sua figura representa: uma menina maliciosa, a adolescente insinuante chupando um pirulito ardilosamente, uma garota de doze anos capaz de enlouquecer um homem de meia-idade.
Tornou-se um clássico da literatura mundial. Afinal ele é muito bem escrito, quase poético em alguns pontos, fruto de uma mente privilegiada, um russo que o concebeu em inglês, notável.
Mas como ficam as meninas diante deste estereótipo criado por uma obra tão emblemática? Como ficam as mães viúvas de meninas que desejam se casar novamente? Como se sentem as garotas vítimas de abusos dentro da própria casa por pais, padrastos, tios, primos e amigos da família ao lerem uma obra que romantiza o repudiável?
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, cerca de 73% dos estupros registrados em 2020 foram contra vulneráveis. 86% das vítimas eram meninas, 85% dos abusadores eram conhecidos das vítimas e destes 96% eram homens. Há Humberts por todos os lados, foi a ficção quem os criou ou eles sempre estiveram aqui?
Este espaço é dedicado a explorar a literatura como ferramenta de transformação e mostrar o poder que os livros têm de nos fazer progredir à medida que nos inserem em realidades alternativas. Porém, este exercício se complica quando um livro com a mais pura ficção nada mais faz do que exibir uma fotografia do nosso cotidiano, escancarando a banalidade que alguns temas alcançaram na sociedade.
Mas sempre é tempo de refletir, reler e ressignificar, tornar de novo prioridade o que foi relegado ao campo do corriqueiro. Enquanto formos capazes de um olhar crítico para a arte podemos dar a ela novo sentido, desmanchar estereótipos, explorando uma camada mais profunda de sentido naquela imagem. Transformar a realidade e devolver o absurdo ao seu lugar.
Toda a transformação pessoal promove impactos no coletivo, é preciso treinar um novo olhar para o mundo. Não é mais tolerável que vejamos Lolitas no lugar de crianças, nem permitir que Humberts circulem tranquilamente entre nós.
Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.
Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.
No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.
Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini
Avançar em civilidade representa abandonar instintos primitivos. Não sei se há uma pergunta certa mas será que todos nós, de alguma forma, não carregamos Humberts dentro de nós? Quanto o Leviatã tem se mostrado capaz de impedir que cada um acesse seu Humberts interior? Ótimo texto! Expansível pra ótimos debates. Parabéns!
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Todas as perguntas são possíveis, investigar é uma parte do debate, a outra parte é admtir que é uma situação real que a sociedade mascara ou finge não ver.
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Texto impecável, Monique. Apesar de não ter lido Lolita, lembrei muito da sua imagem popular diante dos últimos acontecimentos. Deixo uma sugestão de leitura: Minha sombria Vanessa, de Kate Elizabeth Russell. O livro mostra o outro lado, dá voz a inúmeras Lolitas. Vanessa foi abusada pelo professor de literatura desde os 15 anos, que usou o livro de Nabokov para seduzi-la.
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Nossa, Lícia, quero ler! Ótima indicação! Obrigada!
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