Muitas lendas e mitos antigos se espalharam no imaginário popular devido à aura de mistério que carregavam.
Pense no monstro do lago Ness: uma pessoa deve ter visto algo estranho pelo lago, contou aos outros que podem ter acreditado ou não no sujeito, mas já ficaram com a pulga atrás da orelha.
Com relatos semelhantes se multiplicando, a história vai soando cada vez mais verdadeira. Mesmo que não houvesse nada para comprovar a existência do monstro além das palavras daqueles que o viram, o boato é capaz de ganhar um status pelo menos de alerta para se tomar cuidado ao andar perto daquele lago.
Mas já imaginou o telefone sem fio que isso devia dar? Os primeiros que ouvissem o caso poderiam receber a descrição de uma lagartixa enquanto para os últimos já pareceria mais um jacaré. Isso se o sujeito que avistou o bicho já não adotasse histórias de pescador desde o início.
Não havia muita base de verificação a não ser que trouxessem o monstro arrastado pela cauda até o centro do vilarejo e então, pelo sim ou pelo não, o medo se propaga. O mundo ainda era um lugar pouco explorado, hostil. Fazia sentido povoá-lo de seres sobrenaturais em locais inóspitos para poder explicar fenômenos que a ciência da época não possuía meios de desvendar.
Por isso é tão comum a sensação de que pessoas e acontecimentos das eras mais antigas nos soem mais épicos e idolatráveis do que aquilo que existe hoje. Onde os seres sobrenaturais vão poder morar atualmente se o ser humano já consegue ter uma visão de satélite de uma clareira qualquer na Floresta Amazônica ou dos grãos de areia no meio do deserto do Saara?
Na China antiga, a dinastia Yuan possuiu imperadores cuja ascendência acreditava-se ser compartilhada com dragões e isso que ocasionava a prosperidade da região. Muitos habitantes nunca devem ter visto o rosto desses imperadores, apenas ouviam dizer o que o outro ouviu falar. E assim essas figuras podiam ganhar associações com Deuses ou outros seres iluminados de uma forma razoavelmente aceitável dentro da população.
Mas e hoje? Existe foto de tudo, vídeo de tudo. Você pode nunca ter ouvido falar do líder de governo da Mongólia, mas numa pesquisa rápida você logo descobre o seu nome, data de nascimento, família. No mínimo. Procurando por qualquer vídeo você conhecerá sua expressão, sua voz, seus sinais de força e fraqueza, de vitalidade e envelhecimento. Você percebe que se trata de uma pessoa criada sob um ambiente bastante diferente, mas que ainda assim é uma pessoa. Alguém comum, com vontades e medos, qualidades e defeitos.
O herói clássico não pode existir mais diante de câmeras que acompanham os seus passos quando ninguém antes poderia fazê-lo. A glória da vitória já não tem todo o brilho quando se conhecem as derrotas diárias do ídolo. Assim como uma história de pescador desmascarada, a realidade ofusca o encantamento da imaginação.
Porém, esse golpe de realidade nua e crua também pode ser observado de outro modo: se não existe a perfeição, a imperfeição pode ser melhor aceita e normalizada.
Somos feitos de luz e sombra, consciente e inconsciente, Yin e Yang. Dar mostras apenas de nossas forças é esconder o nosso lado de vulnerabilidades que igualmente influenciam nossas decisões.
Já podemos despir as máscaras. Podemos ser inteiros.
Se não há mais espaço para heróis atualmente, ganha-se espaço para sermos simplesmente nós mesmos.

Autor

Leandro Dupré Cardoso é o criador da página Olhar para Dentro.
Administrador paulistano nascido em 1993, é produtor de artigos para o blog Obvious e foi indicado para a fase final do Prêmio Strix 2016 e 2017 pelas publicações em coletâneas de contos da Editora Andross. Tornou-se jurado do Prêmio Strix em 2018 e 2019.
É autor dos livros de ficção “O rico, a velha e o vagabundo”, “A era i-Racional”, “Samádia – A lenda da ilha perdida”, bem como da série “O Pinheiro”, entre outros publicados pelas Editoras Andross, Clube de Autores e Kindle Direct Publishing (Amazon).
Email: leandroduprecardoso@gmail.com
Facebook: Leandro Dupré Cardoso
Instagram: @leandro_dupre