Uma trajetória se constrói com muitas mãos

Biografias são controversas e, entre as melhores, estão as que fogem do lugar panfletário trazendo verdadeiras lições de vida, não somente pelo aspecto da superação de obstáculos, um lugar comum a todos, mas pelas incríveis relações e conexões que as fizeram persistir em suas escolhas.

Lançado quando Patti Smith tinha mais de sessenta anos, Só Garotos, é um livro que traz as memórias da autora antes da fama, quando ela dividia com seu grande amor e amigo, o fotógrafo Robert Mapplethorpe, o sonho de serem famosos, o teto, as moedas e a comida.

A menina que queria ser poeta deixou sua cidade aos vinte anos, partindo para a efervescente Nova York dos anos sessenta sem um tostão no bolso e com apenas um endereço nas mãos, onde conheceu Robert, o primeiro estranho a apoiá-la.

Antes que encontrasse um lugar na grande maçã, Patti dormiu ao relento, contando com a ajuda de um já experiente morador de rua para conseguir alimento e arrumar o trabalho, que seria também seu abrigo. A partir de então, a lista de perrengues fica imensa e, claro, permeada de dúvidas.

Mais do que enxergar ou criar as próprias oportunidades ou persistir e acreditar no próprio talento, Patti revela as pessoas que entraram em cena apenas para lhe estender a mão. Além do mendigo que a alimentou e Robert, uma outra passagem comovente é a do homem na fila que inteira os centavos que faltavam para que ela pudesse comprar o que seria sua única refeição do dia.

Enquanto Patti Smith, precursora do punk e escritora reconhecida, posava na lista de mais vendidos com este Só Garotos, também a roqueira brasileira mais icônica, Rita Lee, lançava suas memórias às vésperas de completar setenta anos, passando a vida a limpo.

A caçula, criada com outras cinco mulheres, muito cedo foi vítima de uma violência brutal que a colocou no centro dos cuidados do clã, que a apoiava a viver como queria, estimulando e protegendo.

Quando percebeu que era artista pra valer, sendo convidada para se apresentar em Londres, contou com ajuda de ninguém menos que Gilberto Gil, o qual se dispôs a ir em pessoa conversar com o pai da jovem, pedindo autorização para que ela pudesse viajar.

Outra figura marcante na trajetória de Rita foi Roberto de Carvalho. Ele a despertou para a necessidade de conduzir a carreira com maior profissionalismo e tornou-se seu parceiro de vida.

No passado, em alguns programas de televisão, era comum ver Rita e Roberto serem celebrados como moderninhos por morarem em casas separadas, mas no livro ela revela a razão da medida: sua batalha com o alcoolismo.

Tanto Patti quanto Rita tem seu lugar no panteão dos grandes artistas. E este lugar iluminado das pessoas de sucesso pode ofuscar os desafios de sua jornada, e mais, ofuscar todas as pessoas que de certa forma contribuíram para que elas estivessem ali. Assim, suas biografias trazem luz para o que estava na sombra.

Não se trata de fazer uma lista, nem de dar a medida do que cada um contribuiu para seu sucesso, mas sim destacar como a colaboração é imprescindível para que se possa seguir em frente.

Os delírios individualistas de uma sociedade de consumo, acostumada a medir o valor de uma pessoa pelo que ela tem, afasta o olhar das mãos que nos levantam depois das quedas. Aquelas que apontam o caminho diante da incerteza e acolhem em abraços nos momentos de tristeza ou de maior alegria.

Essas mãos que, também por vezes, se dão para seguirem juntas um caminho totalmente novo e somam forças para desbravar um sonho. Aquelas que se estendem oferecendo apoio nas horas mais difíceis também escrevem de alguma forma nossa história.

Ao conhecermos relatos reais que valorizam estas colaborações, somos convidados a enxergar os pequenos empurrões recebidos, sem os quais alguns passos jamais seriam dados. Uma oportunidade de agradecer às mãos responsáveis por isso.

Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.

Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.

No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.

Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini

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