Todas as famílias se parecem?

Léxico familiar, O castelo de vidro e Anarquistas, graças a Deus para entender

Família, família

Vive junto todo dia

Nunca perde essa mania.

Os famosos versos da canção dos Titãs sugerem que todas as famílias se parecem. Há quem diga que não, que sua família é única. Mas, sendo assim, porque nos identificamos com as histórias de outras famílias? Por que os versos da música Família soam tão… familiares?

Em seu livro Léxico Familiar, de 1962, Natalia Ginzburg relata as memórias de sua família italiana com raízes judaicas e abertamente antifascista no período que vai do fim da primeira guerra até a reconfiguração do mundo, pós-segunda guerra mundial. Ali percebemos o quanto as famílias podem se parecer e ainda assim, serem únicas.

Natalia, a mais nova dos irmãos, observava o pai e a mãe, donos de personalidades muito diferentes, ele cientista e enérgico, ela romântica e bem-humorada, criando juntos cinco filhos ainda mais diferentes entre si e fazendo aquilo tudo funcionar. Não sem desentendimentos, não sem rusgas, mas como uma família.

O que, segundo a autora, fazia da sua família única, era o vocabulário. Sua mãe adorava contar histórias e as repetia à exaustão. Se alguém a alertava de que o fato já era conhecido, ela procurava outro interlocutor e seguia contando. Em cada uma dessas histórias havia uma fala a que ela atribuía um significado que logo se incorporava às conversas da casa. Para uma pessoa de fora talvez a frase soasse sem sentido, mas eles sabiam, a família sabia o que ela queria dizer repetindo o que disse no passado a tia distante.

E todas as famílias não são assim? Elas têm pelo menos uma palavra própria para designar um objeto ou uma situação, algo que só eles entendam, como um código privado.

Já o cenário que encontramos no livro O castelo de vidro, de Jeannett Walls, que inclusive ganhou uma adaptação cinematográfica, não é tão acolhedor. O elo que faz esta família disfuncional permanecer junta é uma ilusão mantida pelo pai de que um dia viveriam num castelo de vidro. À medida que crescem, as crianças abandonam o sonho, criando para si um ambiente mais estável e menos dramático, opondo-se à vida que levaram até ali.

Apesar de não ser um retrato feliz, o livro aborda com delicadeza a relação entre pais e filhos. Os pais, que já foram filhos, fazem o que acreditam ser o melhor. Os filhos crescem e reagem ao que aprenderam, nem sempre da forma como os pais esperam ou imaginam e ambos ficam marcados pelas mágoas por tudo que o outro não foi.

Família e decepção andam de mãos dadas. As primeiras pessoas com quem nos relacionamos e que julgamos conhecer são muitas vezes as primeiras a nos decepcionar e, por isso, também nesse ponto, ainda que cada uma à sua maneira, todas as famílias se parecem.

No Brasil, em 1979, Anarquistas, graças a Deus, da imortal Zélia Gattai, apresentou sua família de imigrantes estabelecidos numa São Paulo nada cosmopolita, com ruas de terra, casarões, bondes, um serviço de carrocinha e que foi até palco de guerra.

Ao longo da narrativa vemos a cidade crescer e se transformar junto com a narradora, que começa pequenininha, comprando um chapéu nas Lojas Mappin e acaba moça, querendo saber quem era esse tal de Jorge Amado que vinha às reuniões políticas que sua família frequentava. Aos poucos sua casa torna-se um microcosmo de tudo o que está acontecendo na sociedade à sua volta.

E quem não tem um tio, um avô ou uma prima mais velha que faz questão de contar de onde viemos, mostrar onde estão nossas raízes? Aquela pessoa que aponta um lugar dizendo que ali, antes, era tudo mato? É de mãos dadas com nossos familiares que costumamos dar os primeiros passos para fora do ninho e, neste aspecto talvez, a seu modo, todas as famílias também se pareçam.

Atualmente, a diversidade das famílias é algo a celebrar: não existe família tradicional, o modelo é não ter modelo. Que bom que é assim. Mas nem essa assimetria muda o fato de que a família, seja ela como for, é a primeira sociedade que conhecemos, o primeiro discurso de que nos aproximamos ou afastamos. Conhecer a dinâmica de outras famílias facilita a compreensão da nossa própria e demorar um pouquinho mais o olhar sobre isso pode nos ajudar a entender o que nos torna únicos.

Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.

Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.

No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea, Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.

Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini

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