Esse filme é um daqueles que te faz sair da zona de conforto. Logo que acabou não consegui falar nada por alguns instantes devido a essa trama perturbadora e que realmente vale a pena de ser conferida.
À primeira vista, “O labirinto do fauno” parece um filme infantil, com uma garotinha como protagonista que vive no mundo dos contos de fadas inventado por ela mesma. É, só parece.
A história se passa em 1944 na Espanha, época da ditadura de Franco e dos atos finais da segunda guerra mundial, onde torturas e execuções sumárias são praticamente parte da vida cotidiana. Neste cenário está imersa Ofélia, a menina que amava os livros de contos de fadas e que vê sua mãe em estado debilitado devido a sua nova gravidez. E, para piorar, a genitora começa um relacionamento com o Capitão Vidal, representante puro da autoridade fascista vigente que comanda os seus combatentes sem dó nem piedade contra os oposicionistas do governo, alguns poucos rebeldes que ainda se espalhavam pelas montanhas.
Era uma realidade dura. Não havia espaço para crenças: o patriarcalismo era notório, a razão imperava, analogia feita pelo relógio do qual Vidal não se separa em nenhum instante.
E Ofélia é a única que não aceita toda essa árdua condição: sua mente criativa está sempre gerando formas para alegrar de alguma forma aquele ambiente sombrio. Mas pensar diferente naturalmente leva a atritos, o que fazia com que a garota sofresse constantes advertências para que fincasse os pés naquele chão duro e estéril.
Mas ela não podia: exatamente como Dom Quixote tornava reais os romances de cavalaria, Ofélia irá viver seu próprio conto de fadas. Porém, conhecendo somente as agruras da vida, suas fantasias não seriam mais do que projeções da sua vida real, criando assim, em vez de príncipes encantados em castelos exuberantes, somente monstros que a colocavam em risco a todo instante.
Mas tudo tem um começo. E esse começo é o labirinto. A inifinidade de caminhos para chegar a uma só saída, o cérebro em busca da sua missão. É nessa situação que a menina encontra o fauno.
Conhecido como o protetor das florestas, o fauno é uma espécie de bode que pode andar sobre os dois pés assim como os humanos. As semelhanças com as mais comuns descrições ocidentais para o diabo certamente não são casuais mesmo tratando-se de um ser concebido ainda pelos gregos antigos. E então, acreditar nele ou não?
Pois o fauno lhe vem com uma proposta tentadora: diz que Ofélia havia sido a rainha do mundo subterrâneo e que deve completar 3 tarefas para que possa retomar o seu reinado.
Na primeira deve acabar com uma espécie de parasita que está sugando as forças da árvore-mãe, colocada como uma figueira. Isso elucida a valorização do matriarcalismo em uma sociedade dominada pela brutalidade masculina. Confesso que no começo não percebi, mas é clara a relação entre Capitão Vidal e Cronos, deus do tempo. O capitão nunca abandonava seu relógio de bolso e sempre faz de tudo para demonstrar e preservar o seu poder de comando, assim como Cronos, que passa a devorar os próprios filhos a partir do momento em que descobre que será destronado por um deles. No final, ambos também encaram os seus inevitáveis destinos.
A segunda tarefa de Ofélia é a mais conhecida por causa da sua maior tenebrosidade: a menina tem de recuperar um punhal de uma criatura sem olhos, o homem pálido.
No entanto, apesar de se exibirem imagens de que esse monstro costumava devorar as crianças que o visitassem, ele não seria capaz de mover um músculo caso Ofélia não comesse nada de seu rico banquete. Esta tarefa demonstraria o desapego às coisas materiais. Tanto que a sala e os alimentos possuem sempre um tom avermelhado para estimular as reações mais impulsivas e até os olhos do homem pálido (sim, na verdade ele tinha olhos, mas os colocava nas palmas das mãos) são também mostrados em uma bandeja. O pensamento racional, econômico, que só é capaz de ver um mundo concreto e frio.
Ao contrário de Ofélia, que à altura da terceira tarefa, tem algo como uma transcendência pelo próprio sacrifício. Seus olhos veem além da realidade, assim como os poucos rebeldes das montanhas que acreditam poder vencer toda a hegemonia franquista e efetivamente conseguem tomar a base de Vidal (em uma operação um tanto forçada, no entanto, com os revoltosos parecendo possuírem muito mais munição e pessoal do que uma base governista que teria acesso bem mais fácil a ambos).
Nesse momento é que se desenrolam dois possíveis finais: com a morte da garota, ela poderia descobrir que, por todo o tempo, o fauno esteve a testá-la e a aprovou, finalmente assumindo o trono ao lado da mãe e de seu possível pai. Ou senão, na verdade, toda a história teria sido pura invenção de uma fértil mente infatil e toda a sua luta teria sido em vão.
Por isso, muita gente pode achar o filme um tanto triste pelo sofrimento e conclusão dúbia para a vida de Ofélia. Mas eu não achei. Assim como o diretor estimula a redenção do ditador frente à iniciativa republicana, Ofélia não tem um final tão ruim assim. Claro que a morte de uma criança nunca é louvável, porém, pela narrativa, é possível perceber que fosse apenas questão de tempo para Vidal realmente perder a paciência com ela. Mas mesmo que tenha sido verdade ou mentira a sua trama, Ofélia ainda foi capaz de morrer feliz. Pois, na cabeça dela, a garota cumpriu efetivamente a sua missão e agora poderia colher os frutos das suas escolhas. Foi a conclusão que Dom Quixote faria de tudo para conseguir: morrer ainda que vivendo seu sonho.
Imagem: http://magiaeimagem.wordpress.com/2009/07/27/o-labirinto-do-fauno/
Autor

Leandro Dupré Cardoso é o criador da página Olhar para Dentro.
Administrador paulistano nascido em 1993, é produtor de artigos para o blog Obvious e foi indicado para a fase final do Prêmio Strix 2016 e 2017 pelas publicações em coletâneas de contos da Editora Andross. Tornou-se jurado do Prêmio Strix em 2018 e 2019.
É autor dos livros de ficção “O rico, a velha e o vagabundo”, “A era i-Racional”, “Samádia – A lenda da ilha perdida”, bem como da série “O Pinheiro”, entre outros publicados pelas Editoras Andross, Clube de Autores e Kindle Direct Publishing (Amazon).
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