Enfrentar mistérios e viver o novo são coisas de criança

Tornar-se adulto é perder um pouco do encantamento pelo desconhecido de que só uma criança curiosa pode desfrutar. É ostentar uma carapaça que muitas vezes blinda o olhar para pequenas maravilhas, como a incrível constituição do vagalume que carrega uma luz dentro de si.

Ninguém que cresce pode voltar a ser criança e, a menos que você seja Peter Pan, é inevitável crescer. Mas ainda é possível manter viva a criança que já fomos se aceitarmos que há muitas coisas no mundo a descobrir.

O mote da história De repente, nas profundezas do bosque, de Amós Oz, é um bilhete de volta à infância que incita o leitor a, junto de Mati e Maia, descobrir o mistério guardado nas montanhas de sua aldeia remota.

Lá não existe bicho algum, seja ele quadrúpede, peixe, réptil, pássaro ou inseto, e as crianças são proibidas de entrar no bosque onde, segundo os adultos, reina Nehi, um demônio. Quem se embrenhou por lá não voltou, ou então voltou avariado. A curiosidade neste caso implora pela contravenção das crianças.

À medida que a aventura se desenrola conhecemos uma comunidade bastante enrijecida, que despreza o diferente e exclui quem não se adequa. No entanto, as crianças encaram tudo com a leveza própria de quem vai à escola sem saber matemática e volta para casa multiplicando laranjas e dividindo balas. Para elas, a transformação está no campo da possibilidade.

Já no caso dos jovens primos Berit e Nils a história é menos dramática. Ao se separarem após um período de férias juntos, eles decidem manter contato através de cartas, algo bastante aceitável para 1999, quando Jostein Gaarder e Klaus Hagerup escreveram A biblioteca mágica de Bibbi Boken.

Mas, o que poderia ser um adocicado romance epistolar, torna-se um instigante thriller com uma investigação que busca desvendar quem é Bibbi Boken, a bibliotecária misteriosa e um tanto esquisita que sempre cruza seus caminhos.

É impossível não rir com estes aprendizes de Sherlock e, mais impossível ainda, não buscar o tanto de referências que eles fazem à medida que as investigações avançam, o que de certa forma nos possibilita reconstituir seus passos até a porta da solução do mistério.

O encantamento com os detalhes dá a tônica da história:

Um livro é um mundo mágico cheio de pequenos símbolos que podem ressuscitar os mortos e dar vida eterna aos vivos. É incrível, fantástico e ‘mágico’ que as vinte e seis letras do alfabeto possam ser combinadas de tantas maneiras, que elas possam encher com livros estantes gigantescas, levando-nos para um mundo que nunca tem fim e nunca cessará de crescer e se expandir, enquanto na Terra existirem humanos”.

 Se não podemos voltar a ser crianças, a gente pode tentar reaprender a ter a leveza delas. Supor que as crianças não entendem certos assuntos ou não percebem a extensão de um problema é uma arrogância comum aos adultos.

A ingenuidade infantil é uma grande ferramenta de aprendizagem, pois lhes permite admitir, sem vergonha, que não conhecem algo e que precisam aprender uma nova lição para enfrentar um novo desafio.

Oz escreve em sua delicada narrativa:

Além de Almon, o pescador, a quem ninguém dava ouvidos porque todos debochavam dele, não havia ali em toda aldeia alguém que ensinasse as crianças que a realidade não é apenas o que o olho vê e não somente o que o ouvido escuta e o que a mão pode tocar, mas também o que se esconde do olho e do toque dos dedos e se revela às vezes, só por um momento, para quem procura com os olhos do espírito e para quem sabe ficar atento e ouvir com os ouvidos da alma e tocar com os dedos do pensamento.”

A vida está cercada de mistérios, ainda não há quem saiba tudo. Mas para saber mais é preciso ser curioso. Enquanto os adultos se fixam naquilo que está evidente, as crianças naturalmente se perguntam: o que será que há mais além?

Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.

Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.

No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.

Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini

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