É (im)possível ser feliz sozinho

Um dos clássicos da bossa nova sentencia: é impossível ser feliz sozinho. Mas se tem uma coisa que a pandemia nos empurrou goela abaixo foi a solidão. O mundo ficou mais triste, isolado, e muita gente teve que aprender na marra a encarar a solidão.

Na literatura, alguns personagens vivem com desfaçatez sua vida solitária, que não é só de alegrias e bem que conta com algumas visitas, mas que colocam no centro da história o comportamento do homem diante de si mesmo.

Um destes personagens chama-se Santiago, o protagonista de Ernest Hemingway na novela O velho e o mar. Santiago é um pescador velho, que há oitenta e quatro dias não pesca nada. Seu único amigo, um pequeno garoto que o ajudava em suas viagens, é afastado dele pelos pais, que temem que ele se contamine com o azar do velho.

Porém, numa de suas insistentes investidas para pôr fim ao mau período que atravessa, Santiago afasta-se muito da costa se embrenhando mar adentro e entrega sua sorte ao destino, que decidirá se seu tempo como pescador chegou ou não ao final.

Sozinho no meio do oceano, o simplório Santiago é obrigado a conversar consigo mesmo para manter a sanidade, fugir do tédio, além de debater apenas com seus próprios botões as estratégias de sobrevivência que permitirão que ele regresse portando o troféu do seu júbilo ou a prova de sua completa decadência.

Em contraponto ao humilde Santiago, temos Renée Michel, a zeladora de um prédio de classe alta em Paris. Ela faz de tudo para passar despercebida, simulando ignorância e simplicidade, enquanto o apartamento abriga seus rastros de leitora voraz e mulher sofisticada, na história do livro A elegância do ouriço, de Muriel Barbery.

Assim como Santiago, Renée é acompanhada de perto por um miúdo, aqui uma garota, que logo percebe a artimanha da zeladora que encontra na solidão refúgio para ser como realmente é, longe do peso das expectativas sociais.

Renée também conversa muito consigo mesma, carregando o tom na filosofia para com isso manter-se intocada pelo ambiente cheio de superficialidade onde vive. Tudo com uma narrativa muito simpática e cheia de humor ácido, diferente de Hemingway com sua crueza e rusticidade.

Comove, em ambas histórias, a habilidade com que os protagonistas superam sua solidão, o que não é o mesmo que dizer que gostem de ficar sozinhos. Para Santiago, o menino é um verdadeiro apoio. Já Renée descobre que nossa individualidade nem sempre é tão individual assim, e ela conhece alguém com quem tem muito em comum.

Em tempos de redes sociais estamos em contato permanente com muitas pessoas, conhecidas ou não e acompanhamos, mesmo que apenas de vislumbre, parte do seu dia, e comungamos também alguns momentos da nossa rotina.

Se a pandemia nos colocou em casa, fechando áreas de lazer em grupo e restringindo aglomerações, o certo é que as videochamadas foram bastante eficazes para que parabéns não fossem cantados sozinhos e ainda tivéssemos alguma impressão de sala de aula lotada ao ver tantos quadradinhos ativos numa mesma tela.

Mas será que em algum momento ficamos sozinhos como se estivéssemos no meio do mar, como Santiago, que contava apenas consigo? Ou ainda como Renée, vendo o mundo passar pela sua porta como se ela fosse mera expectadora da vida? E o que cada um de nós fez ou faz quando está diante de momentos assim?

No caso de Santiago, a solidão era uma condição da sua vida, mas ele aceitava o menino e até estimava sua presença. Já no caso de Renée a solidão era uma escolha, mas ela acabou percebendo que talvez não precisasse ser o tempo todo assim.

Seja qual for dos protagonistas com que a gente se identifique mais, sua mensagem é muito significativa: a de ser o bastante para si mesmo. Ambos tecem longos diálogos interiores, refletem sobre a vida, pensam em livros, em beisebol, nas notícias, na vida do vizinho novo, mas em nenhum momento colocam um outro como condição indispensável a sua existência.

E, embora de certa forma o outro seja importante, afinal é um aspecto da vida em sociedade, ele não pode ser a base para a individualidade. Nos livros não há uma expectativa pela presença de um interlocutor. O que há é uma solidão genuína, que não é encarada como penitência ou infortúnio, mas como um momento de encontro íntimo, que só é possível quando se está disposto a conhecer-se a si mesmo e acolher-se como se é.

Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.

Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.

No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.

Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini

2 comentários em “É (im)possível ser feliz sozinho

  1. Muito interessante este paralelo da solidão dos dois personagens em situações totalmente diferentes.
    As vezes nos encontramos mesmo estando no meio da multidão.
    Outras vezes é necessária a solidão.
    Na faculdade de letras um dos livros analisados em Literatura Americana foi o livro O Velho e o Mar. Lembro da angústia dele e da gente traduzindo.
    Quando você diz que ele precisava falar com ele mesmo, lembro do depoimento de um homem que foi preso na ditadura e ele disse que repetia para ele mesmo as palestras que costumava dar para não enlouquecer. Não me lembro quem foi que deu este depoimento.
    Como sempre. Parabéns. Arrasou

    Curtido por 1 pessoa

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