No constante exercício de reflexão, um livro puxa outro e duas histórias diferentes em gênero e conteúdo, mas atravessadas pelo mesmo tema, o corpo, acabaram se cruzando por aqui.
Fome, uma autobiografia do (meu) corpo, da professora americana Roxane Gay, narra como a autora, após sofrer um abuso sexual aos doze anos, passou a utilizar seu próprio corpo como um esconderijo contra os seus piores medos.

Já Ponto Cardeal, da francesa Léonor de Récondo, é um romance que conta a história de Laurent, casado e com filhos, e sua decisão de parar de se travestir às escondidas da família para dar lugar definitivamente à mulher que é, tornando pública sua transição de gênero.

São livros com temáticas muito particulares e personagens que em nada se comunicariam não fosse o fato de que seus corpos passam pelo escrutínio público.
A honestidade com que Roxane fala sobre seu corpo gordo às vezes é embaraçosa. Ela não finge amar-se sobre todas as coisas, ela não espera que ninguém a entenda. Ela simplesmente conta a história da sua vida e do corpo grande que a abriga, sem querer convencer ninguém de nada. Ela tem um corpo grande, esse é um fato, mas não é tudo sobre ela.
Já no romance francês, em meio a uma crise, a personagem se pergunta: “Será que vou ter que escolher? A verdadeira questão é essa. A gente deve ser o que os outros veem, ser da maneira como os outros nos amaram?”
Para ambos, submeter ou não sua existência, bem-estar e saúde mental ao que os outros esperam dos seus corpos é um dilema e não deveria ser, já que seus corpos só dizem respeito a eles mesmos.
Na história da humanidade vem de longe essa inquietação sobre a forma do corpo. Os gregos privilegiavam corpos atléticos, os renascentistas as complexidades anatômicas. E, se houve um tempo em que a corpulência era vista como sinal de saúde e riqueza, também sobrevieram tempos em que a magreza se tornou a bola da vez.
E nem vamos parar para pensar sobre como os traços étnicos, cor da pele, formato dos olhos, textura e cor do cabelo, ganham sua porção de apelo no rol de características físicas ditas desejáveis.
Mas, enquanto antigamente corpo e mente eram vistos em esferas distintas, na modernidade essa dicotomia se rompeu e a vida humana passou a estar completamente atrelada à experiência da carne[1].
Não é à toa que Simone de Beauvoir evidenciou com sua perspicácia que a mulher, definida por critérios biológicos ao nascer é um outro corpo, e daí sua obra chamar-se O segundo sexo. Da mesma maneira, Michael Foucault dedicou seus estudos a apontar como os corpos são marginalizados por não corresponderem ao que a sociedade estabelece como padrão.
Assim, é impossível dissociar o corpo das experiências sociopolíticas que atravessam um indivíduo. Racismo, gordofobia, transfobia, capacitismo, etarismo e preconceitos de toda ordem são só a ponta do iceberg do que sofrem as pessoas com corpos dissidentes, corpos que não correspondem a padrões e expectativas que são dos outros.
Lauren, a protagonista de Ponto Cardeal não arrisca a paz conquistada através do corpo de mulher que a duras penas assumiu: “Quero te mostrar que é preciso ser a gente mesmo, apesar de todas as provações, apesar da incompreensão.”
Já Roxane explica: “Esta é uma autobiografia do (meu) corpo porque, frequentemente, histórias de corpos como o meu são ignoradas, descartadas ou ridicularizadas. As pessoas veem corpos como o meu e fazem suas suposições. Elas acham que sabem o porquê do meu corpo. Elas não sabem.”
Romper com a objetificação dos corpos e amplificar a percepção de que um indivíduo é mais do que sua forma exterior, ainda mais em tempos de constante exposição, é imperioso. Não pode ser saudável uma sociedade que não aceita a pele que habita e ainda julga a pele que seu semelhante veste.
Os conceitos de beleza e padrão são voláteis e abstratos, muitas vezes estabelecidos em benefício de um pequeno grupo que vai lucrar com as inseguranças de quem não se enquadra num modelo inalcançável.
Dar espaço para leituras que explorem a pluralidade dos corpos contribui para o fim de estereótipos, destrói preconceitos e promove a autoaceitação. Afinal nos reconhecer numa grande história injeta uma boa dose de autoconfiança e ao mesmo tempo amplia nosso olhar para o outro, que certamente é mais do que um corpo.
[1] https://www.unicamp.br/chaa/rhaa/downloads/Revista%2013%20-%20artigo%2012.pdf, disponível em 23.02.2022
Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.
Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.
No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.
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