Nível 5, força 67, resistência 30.
Nos jogos virtuais nós conhecemos profundamente as forças e fraquezas das personagens que controlamos. Mas e as nossas próprias?
No ensejo de demonstrar que é capaz das maiores proezas, o ser humano sempre buscou o enfrentamento de diversos tipos de provações que fortificassem a sua autoafirmação como uma pessoa “vitoriosa”. Se nos games o sinal de progresso é o avanço de fase, nos tempos passados essa situação era mais aparente nos ritos de passagem.
Os ritos de passagem geralmente envolviam algum tipo de derramamento de sangue para que meninos e meninas se habilitassem a entrar na vida adulta.
Em povos indígenas brasileiros era comum que a menina permanecesse reclusa dos demais para conhecer seu corpo a partir da primeira menstruação e se preparasse para constituir uma família. Já o menino era preparado para entrar em uma casa mística, proibida para mulheres e crianças, para aprender a lidar com os espíritos da floresta que fornecem os alimentos daquela população. Assim, o sujeito estaria pronto para a primeira caçada e apto a suportar situações extremas que também vivenciaria durante esse processo, tais como pisar em brasas, sobreviver a noites sozinho na mata ou passar por transformações físicas permanentes como tatuagens, perfurações de boca e orelhas, circuncisão.
Mesmo fora do ambiente indígena, a questão da passagem também era evidenciada por meio do costume de a família preparar o casamento dos filhos que acabavam de atingir a idade reprodutora para já fazê-los se “virar sozinhos” na vida.
No entanto, a redução da natalidade, o aumento gradual da expectativa de vida e o cuidado dos pais por mais tempo fizeram com que a entrada dos filhos na vida adulta se tornasse cada vez mais tardia. E incerta.
Surgiu a fase da adolescência como intermediária dos primeiros contatos da pessoa com o mundo afora ao passo que ainda se possui um porto seguro na família para poder ser acolhida caso tudo dê errado. Dessa forma, mesmo bailes e formaturas atuais não garantem um status exato de “adulto” para o indivíduo, que acaba flutuando entre a infância e a maturidade conforme lhe convier ao longo de um tempo cada vez mais indefinido.
Apesar de alguns métodos muito mais perigosos para a integridade da pessoa, os ritos de passagem sempre representaram uma transformação definitiva: a partir daquele momento o indivíduo havia virado um adulto e nunca mais poderia voltar atrás. Era uma modificação completa da identidade. E, na atual ausência da garantia da passagem, muitos jovens acabam atraídos por demonstrações questionáveis com o intuito de comprovarem aos outros de que já deixaram o universo infantil.
Desafios entre amigos envolvendo quedas, tapas, chutes e até alguns mais graves que causam cortes, queimaduras ou asfixia se multiplicam há algum tempo. A sensação de pertencimento a um grupo ganha uma importância maior do que a própria valorização.
Outro tipo de consequência da necessidade interna de se mostrar como adulto para o mundo tornou-se por meio do exagero na ostentação. Na ânsia de exibir uma imagem bem-sucedida, a pessoa divulga em redes sociais uma vida de luxo e bens materiais de qualidade que por vezes não são congruentes com o seu verdadeiro dia a dia. Ou que escondem o real estado de ânimo do indivíduo por trás da cativante imagem externa.
Dessa forma, o ser humano se mantém à procura por marcos de passagem, mas o sentido dos rituais originais em muito se perdeu: nunca foi uma questão de provar nada para ninguém. Você só precisa provar para si mesmo.
A grande motivação desses ritos é promover a evolução do sujeito, firmar o seu equilíbrio interno. Fazê-lo encarar situações difíceis para avaliar a sua própria reação, capacidade de raciocínio, resiliência. Nem tudo dará certo nesse processo, mas ainda servirá de lição para as próximas vezes. Esses percalços podem deixar cicatrizes no corpo, porém são eternamente marcados na alma.
Essa é a principal provação com a qual deveríamos nos preocupar: evoluir a alma, transcender o eu. Nossa real competição é para sermos sempre melhores do que o nosso eu de ontem.
Pois não é um rito de passagem isolado que faz alguém se proclamar adulto. Essa cerimônia é apenas o resultado de algo que já vinha sendo construído e que deve seguir sempre sendo edificado.
Não é uma questão de descobrir-se maduro, mas de tornar-se maduro. E não será um grande evento que irá fazer esse anúncio.
Na realidade, o crescimento só se percebe mais visível quando a sua própria consciência se satisfaz com o fato de que as suas ações estejam coerentes com o seu modo essencial de pensar, alinhadas com o seu verdadeiro propósito.
Então não se seguirão fogos, mas um respiro sereno. A silenciosa celebração da consciência de que, ainda que não tenha atingido a paz interior por completo, já se segue pelo caminho certo.
Fontes: http://ea.fflch.usp.br/obra/os-ritos-de-passagem https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/indigenas-fazem-ritual-para-celebrar-passagem-da-infancia-para-a-vida-adulta.ghtml
Autor

Leandro Dupré Cardoso é o criador da página Olhar para Dentro.
Administrador paulistano nascido em 1993, é produtor de artigos para o blog Obvious e foi indicado para a fase final do Prêmio Strix 2016 e 2017 pelas publicações em coletâneas de contos da Editora Andross. Tornou-se jurado do Prêmio Strix em 2018 e 2019.
É autor dos livros de ficção “O rico, a velha e o vagabundo”, “A era i-Racional”, “Samádia – A lenda da ilha perdida”, bem como da série “O Pinheiro”, entre outros publicados pelas Editoras Andross, Clube de Autores e Kindle Direct Publishing (Amazon).
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