“Vivi, olhei, li, senti, Que faz aí o ler, Lendo, fica-se a saber quase tudo, Eu também leio, Algo portanto saberás, Agora já não estou tão certa, Terás então de ler de outra maneira, Como, Não serve a mesma para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter ido mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa, A não ser, A não ser, quê, A não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja ela, a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá de chegar.”
Dia destes, ao comentar sobre uma história que estava sendo sugerida num grupo de leitores, fui repreendida pela minha interpretação. Num primeiro momento a atitude do colega me enervou, mas então deixei passar porque me lembrei da passagem acima, extraída do livro A caverna, de José Saramago, publicado pela Companhia das Letras.

De certa forma, essa liberdade na interpretação de uma história é intrínseca à leitura, não dá para dizer que há livro certo, livro melhor. Não tem livro que eu não recomendo, porque cada livro vai impactar seu leitor de uma maneira única, afinal as percepções de cada indivíduo são subjetivas e, portanto, variáveis.
Daí a delícia que é trocar impressões num clube de leitura. As possibilidades de interpretação que um mesmo livro oferece são inúmeras, chega-se a supor mesmo que estão em debate livros diferentes e, para além da oportunidade de falar sobre o que achou, ainda é possível acolher novas perspectivas. Como eu gosto de dizer, ler pelos olhos dos outros.
Atualmente, algumas comodidades minam essa disposição de encontrar mais de uma possibilidade para a mesma questão. Afinal está tudo a um Google de distância e se o primeiro resultado atende cem por cento aos requisitos da busca, parece sem sentido seguir lendo os demais, menos precisos, uma perda de tempo.
Eu não sei se existe tempo a perder. Certeza mesmo só do agora. E, descobrir coisas sem uma utilidade imediata, parece ser outra habilidade humana que está caindo em desuso. A todo tempo se lê, estuda e pesquisa com uma finalidade. Estudar para o diploma, se atualizar para o trabalho, e o simples ler para saber acaba não aparecendo muito na lista.
Somos capazes de ficar muito tempo rolando a timeline do site de notícias onde tudo está misturado: política, futebol, entretenimento, mundo, publicidade, guerra, fofoca; ou acompanhar por um dia inteiro os stories dos amigos numa rede social, podemos mesmo nos distrair e rir muito com páginas que fazem cômicas curadorias de memes, mas não perdemos tempo lendo ou buscando mais sobre alguma coisa que já conhecemos ou ouvimos falar, porque, às vezes, isto não têm uma utilidade imediata.
No livro mencionado, Saramago alude ao Mito da Caverna, criado pelo filósofo grego Platão, que se dedicou a buscar a essência das coisas, inclusive e, especialmente, do conhecimento. Grosso modo, na alegoria, homens presos numa caverna, de frente para uma fogueira e de costas para a entrada, estão condenados a verem nas sombras projetadas na parede os espectros do mundo que acontece lá fora. Assombrados pelas formas terríveis, os homens temem sair da caverna. Até que um se liberta, determinado a conhecer a realidade, que ao final lhe parece bem menos assombrosa do que a projetada. Ele volta para contar o que viu, mas os que seguem aprisionados, antes de tudo pelas imagens, se recusam a acreditar no que ele conta.
Na última semana, José Saramago, primeiro escritor da língua portuguesa a ser laureado com o Prêmio Nobel de literatura, teria completado 100 anos. Além de muito autênticas, suas obras são repletas de reflexões, mas neste A Caverna, é impressionante o paradoxo que ele propõe: quando um velho oleiro descobre que sua fonte de sobrevivência está condenada pela modernidade ele tem duas alternativas: seguir o fluxo, rendendo-se às frivolidades tecnológicas que lhe oferecem ou buscar um outro caminho para si, um diferente, um que ninguém conhece.
Se nos prendemos apenas em nosso julgamento, como então nos pareceram as coisas ao redor, ainda que seja apenas uma história num livro. Será mesmo uma perda de tempo trocar impressões, considerar outras leituras, enxergar outras possibilidades?
Era uma vez uma caverna, dentro de outra caverna, numa das muitas cavernas que criamos para nós mesmos no conforto dos dias. Era uma vez o pó de que se fez o barro, que inevitavelmente voltará a ser pó. Era uma vez um oleiro que moldava o barro e fugiu da caverna, “éramos nós”.
Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.
Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.
No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.
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