E se, por um momento, delirarmos?

É possível que a gente pare um instante nessa vida que não para e se permita, ainda que por um breve momento, render-se a um pequeno delírio e imaginar como seria o mundo se tudo como conhecemos fosse diferente do que é? Pensar que as avenidas estivessem tomadas por cães e não por carros, e que os cozinheiros se compadecessem antes de ferver as lagostas ainda vivas, onde a comida não pudesse ser mercadoria e a informação um negócio?

Quem se entregou ao delírio de imaginar tais coisas como poderiam ser foi Eduardo Galeano, escritor uruguaio falecido em 2015, autor do texto El derecho al delirio (O direito ao delírio, em livre tradução), de onde algumas das ideias acima foram tiradas.

Galeano ficou célebre por sua obra As veias abertas da América Latina, publicado em 1970, no qual relata os desmandos coloniais e imperialistas nesta região do globo, destrinchando com lirismo e clareza todos os despojos que esta terra sofre desde que portugueses e espanhóis por aqui desembarcaram até a chegada dos gafanhotos das multinacionais.

Em 2010, em prefácio à uma nova edição brasileira, ele lamentou que o livro não tenha perdido a atualidade:

A história não quer se repetir – o amanhã não quer ser outro nome do hoje –, mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após dia.”

De fato, é doloroso olhar para trás e revisitar lembranças feias, situações embaraçosas e momentos que melhor seriam se esquecidos, mas uma doença mal curada sempre volta para pedir a conta, e o passado precisa ser revisitado, passado a limpo, para que os erros não se repitam, para que as feridas se curem.

Em seu O livro dos abraços, de 1989, o autor entrega em textos curtos pequenas pílulas de beleza. De fatos são abraços, embora nem sempre sejam de afeto, alguns sufocam:

Os funcionários não funcionam. / Os políticos falam mas não dizem. / Os votantes votam mas não escolhem. / Os meios de informação desinformam. / Os centros de ensino ensinam a ignorar. / Os juízes condenam as vítimas. / Os militares estão em guerra contra seus compatriotas. / Os policiais não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os. / As bancarrotas são socializadas, os lucros são privatizados. / O dinheiro é mais livre que as pessoas. / As pessoas estão a serviço das coisas.

Assim como está proposto num outro texto deste mesmo livro, Galeano nos ensina a ver, nos ajuda a enxergar os problemas maiores que talvez sejam mesmo os responsáveis pelos comezinhos que nos afligem diariamente: a conta de luz, a fatura do cartão, o preço da gasolina, a qualidade das escolas, a falta de remédio, o medo.

Ao dedicar-se a olhar para o passado e para o presente e entregá-lo ao seu leitor de maneira mais aceitável, ele permitiu não a conformação, mas que pudessem ser encarados com mais coragem, marcando as pragas para que pudessem ser vistas com maior clareza e assim extirpadas, oferecendo recursos de imaginar outra possibilidade de mundo, um que seja feito de alegrias miúdas e não de migalhas miseráveis.

Sobretudo nos convidou ao delírio, à ousadia de imaginar um mundo em que:

As crianças de rua não serão tratadas como lixo, porque não haverá crianças de rua. Crianças ricas não serão tratadas como dinheiro, porque não haverá crianças ricas. A educação não será privilégio de quem pode pagar e a polícia não será a maldição de quem não pode comprá-la. Justiça e liberdade… Irmãs siamesas condenadas a viver separadas, vão se reunir novamente, juntas, ombro a ombro…”

Autora

Natural de São Paulo, é graduada em Direito, História e atua como Revisora.

Feminista em construção, usa sua página no Instagram para compartilhar experiências de leitura e vida.

É colunista do portal Olhar para dentro e do site <commusica.com.br> e integra o Coletivo Escreviventes de escritoras. No Medium publica crônicas intimistas. Tem textos em coletâneas e revistas literárias.

Nas redes é @moniquebonomini e sua produção pode ser encontrada em linktr.ee/moniquebonomini

Publicado por Monique Bonomini

De São Paulo. É formada em Direito e História. Atua como revisora e com leitura crítica. Colunista da página Olhar para Dentro e integrante do Coletivo Escreviventes de escritoras.

8 comentários em “E se, por um momento, delirarmos?

  1. Como sempre só tenho a elogiar seu texto. Monique. Ainda há pouco escrevi um texto e falei em migalhas.
    “Pequenas alegrias sim, migalhas não. Eduardo Galeano é certos males do passado que querem resgatar, em nome do poder e da maledicência

    Curtido por 1 pessoa

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