A vida não é justa

Em 1982, um jovem brasileiro decidiu contar num livro sua história malsucedida de um mergulho. O romance autobiográfico repercutiu tanto que ganhou adaptações para o teatro e cinema, conquistando o público pela linguagem fácil e desenvoltura com que o autor abordou o evento trágico que mudou sua vida.

Algum tempo depois, em 1997, foi a vez de uma garota lançar mão da força do relato pessoal e contar para o mundo como foi descobrir aos dezoito anos que aos dezesseis tinha contraído AIDS do namorado. Eram os anos 80 e a doença ainda era apresentada com uma série de estigmas, e ela precisou encontrar uma forma de sobreviver, antes de tudo, ao preconceito.

Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva, é um livro que não envelhece. A história do rapaz que mergulhou em águas rasas e acabou tetraplégico é um olhar que o autor lança para toda sua vida até aquele momento emblemático que transformou tudo o que ele conhecia, partindo da trajetória da própria família, que precisou lidar com uma deficiência tão permanente quanto a sua e com o desaparecimento de seu pai durante a ditadura, o deputado Rubens Paiva.

Em Depois daquela viagem, Valéria Piassa Polizzi narra desde a descoberta da infecção pelo vírus HIV, quando acreditou estar condenada à morte. Isso a levou aos Estados Unidos em busca de anonimato e segredo, tamanha a vergonha de revelar para família e amigos sua condição de soropositiva, até o momento em que, entre a vida e a morte, ela precisou decidir se iria ou não aceitar o tratamento com os antirretrovirais que lhe amedrontavam.

Apesar de serem obras com as vozes de suas gerações, são histórias atemporais, lições sobre como seguir adiante. Após o dia em que tudo mudou para cada um, todos os planos traçados precisaram ser refeitos já que as escolhas antigas não serviam mais a quem eles se tornaram.

A vida não é justa, mas de que serve essa afirmação senão para afundar num mar de autocomiseração, afinal não existe uma balança para medir a justiça da vida. Talvez a vida não seja mesmo como se quer, são muitas as variáveis: tem a vida, tem a pessoa, tem todo mundo à sua volta e todas as coisas que se experimentam para acreditar que alguém vai conseguir mesmo seguir todos os planos que traça.

Não é sobre propagar um conceito raso de resiliência ou um discurso vazio de se reerguer ou adaptar. É mais sobre entender que durante o percurso da jornada haverá uma gama imensa de situações imprevisíveis que, de repente, podem nos desviar para estradas por onde jamais imaginaríamos ter que passar e neste momento teremos que perguntar: já que estou aqui, seguirei em frente ou viverei tentando voltar para o caminho de antes?

Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.

Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.

No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.

Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini

Publicado por Monique Bonomini

De São Paulo. É formada em Direito e História. Atua como revisora e com leitura crítica. Colunista da página Olhar para Dentro e integrante do Coletivo Escreviventes de escritoras.

20 comentários em “A vida não é justa

  1. Excelente as obras lembradas neste bom e reflexivo texto. São livros atemporais justamente pelo fato de manterem essa sua última pergunta na atmosfera. Renato Russo disse: “sempre em frente, não temos tempo a perder”. Então, vamos!

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  2. Eu li Feliz Ano Velho, quando tinha 16 anos. A menina que era, naquele momento, sentiu um soco no estômago pela dor do Marcelo. Pensamentos contraditórios sobre o acontecido, as revelações íntimas reveladas das mulheres com quem ele se relacionou e o vazio referente ao futuro. Entre a indignação e a dor referente ao processo de se reconstruir, fiquei com a segunda e passei a acompanha- lo, como se pudesse estar com ele na dor e na alegria de se reinventar.

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  3. Acho que preciso revisitar algumas das histórias que amava na adolescência para relembrar que há esperança. Que texto gostoso para abrir a semana!

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  4. Muito legal o seu texto! Contribuir para que as pessoas consigam adotar valores e crenças que nos façam mais capazes de transformação e alegria, ótima proposta para festejar aniversário 🎁 , dando presente a todos! parabéns pela escolha! 🌹🌹🌹🌹🌹🌹🍾 abraço @arte.inesperada

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  5. Nossa, as duas são muito marcantes. Lembro que quando era adolescente li um livro chamado A Guerra de Platão, do Domingos Pelegrini, e ele me iniciou na leitura e até hoje eu lembro da história do professor que desafiou tudo porque mataram seu cachorro. Uma coisa interessante também: na escola que eu trabalhava até 2020 esses dois livros faziam parte do acervo da biblioteca. Espero que eles sejam inesquecíveis pra alguém também.

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  6. A adolescência é uma fase tão peculiar e com certezas algumas leituras têm um impacto inesquecível. Feliz Ano Novo também chacoalhou a minha jovem existência e ajudou a formar a pessoa que sou hoje.

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  7. Eu falando em caminhos, Monique, antes de ler seu texto. Realmente os caminhos inesperados que surgem nos desafiando, testando.
    Feliz Ano Velho li há muito tempo. Lembro bem da agonia quando ele dizia que só podia olhar para o teto branco, já que bso podia virar a cabeça

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    1. É verdade. Pra mim também foi marcante a primeira tentativa dele de passeio na cadeira de rodas. O cinema sem preparo, as ruas e calçadas esburacadas, ele chegando em casa desmantelado. Muito bom resgatar essa leitura com outras pessoas. Obrigada!

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