“Senhor,
peço poderes sobre o sono,
esse sol em que me ponho
a sofrer meus ais ou menos,
sombra, quem sabe, dentro de um sonho.
Quero forças para o salto
do abismo onde me encontro
ao hiato onde me falto.”
Paulo Leminski
Na literatura muitos escritores produzem com regularidade e ao longo de suas carreiras acumulam obras, empilhando lombadas sobre as quais se apoiam ou recostam em eventos e fotos de divulgação.
Este, contudo, não foi o caso de Juan Rulfo, escritor mexicano autor do livro de contos Chão em Chamas (1953) e do aclamado romance Pedro Páramo (1955). Seja porque estas duas obras foram suficientes para ele ser considerado por alguns o maior escritor mexicano do século XX, seja por outra razão, o caso é que além de uma pequena coletânea de textos teatrais, o autor não produziu mais nada até sua morte em 1986.
No Brasil, Raduan Nassar, que recebeu o prêmio Camões de 2016, o maior para autores de língua portuguesa, anunciou sua aposentadoria da literatura já em 1984. Seus romances são Lavoura Arcaica (1975) e Um copo de cólera (1978), e seu livro de contos Menina a caminho e outros textos (1997) foi produzido a partir de textos escritos na década de 60.
Pedro Páramo, com econômicas cento e vinte e sete páginas, é um livro denso, cheio de camadas, onde vivos e mortos conversam e colaboram para reconstituir a história de um pai para seu filho, rompendo os limites entre passado e presente. Neste mundo separado por um véu fino, as vozes são tão claras que distinguir quem está vivo de quem não está, é um desafio.

O autor que dizia ter começado a escrever para combater a solidão e antes disso trabalhou como vendedor de pneus, ambulante e no serviço de migração, assistiu a sua obra arregimentar leitores gradualmente, declarando ter parado de contar as traduções quando chegaram a trinta e oito.
No caso de Nassar, formado em letras e direito pela USP, o ofício literário foi deixado pelo trabalho no campo. Sua fazenda modelo Lagoa do Sino, no interior de São Paulo, objeto de sua dedicação, foi doada em 2011 para a Universidade Federal de São Carlos, segundo ele, “devolvendo para a comunidade o que dela recebi”.
Seu livro de estreia, o incômodo Lavoura Arcaica, se insere neste universo da relação do homem com a terra, com o tempo, com os ciclos e as escolhas, ficar e partir, uma releitura do filho pródigo; um livro sobre desejo e respeito, um livro sisudo, sucinto e muito reflexivo, e, no que diz respeito à aparência, muito parecido com o autor, sempre sério.

Observar estas trajetórias é conceber um hiato, uma interrupção. O hiato é um intervalo, um termo que designa a separação de um encontro vocálico. Ele é um espaço, uma lacuna que se estabelece entre duas vogais, deixando livre a passagem de ar. É um substantivo abstrato, a cisão que ele indica não pode ser vista, e ainda assim está lá.
Rulfo, cobrado diversas vezes sobre seu silêncio, de primeiro dava evasivas, depois passou a insinuar que tinha um projeto em andamento. No entanto, após sua morte nada foi encontrado. Ao tradutor Eric Nepomuceno chegou a dizer: “Eu tinha o voo, mas cortaram minhas asas. Perdi.” A lacuna ficou, sem que o sentido de sua declaração fosse compreendido.
Nassar foi taxativo em 2021: já não se interessa em falar sobre literatura, não tem nenhuma vontade de publicar, os papéis em sua gaveta referem-se a boletos e ele segue sem resposta sobre as razões que o levaram a parar de escrever. E mesmo assim sua obra, nas palavras dele, de um livro e meio, persiste.
Criaram uma máxima afirmando que quem não é visto não é lembrado. E assim se avoluma o oceano da produção de conteúdo, valendo-se de repetições para não se deixar esquecer, o que parece se opor diametralmente ao esforço de conquistar um espaço mais definitivo nas memórias. Seria um risco? Na dúvida, ninguém pode parar nos tempos atuais, não ao menos sem umas tantas explicações. E se é assim por onde o ar vai passar? Haverá algum lugar neste mundo onde ainda caiba a pausa, ser lacuna, ser abstrato e ainda assim existir? Afinal, ainda há hiatos?
Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.
Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.
No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.
Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini
Oi, Mo.
Parabéns pelo texto.
Muito interessante a história sobre esses dois autores, ficamos aqui nos perguntando o que pode ter levado dois brilhantes escritores a parar totalmente de produzir. Vou ler o Juan, o Nassar li um e não gostei, mas acho que já te disse isso. Talvez eu possa tentar novamente e ver se minhas impressões mudam. Falando sobre o porquê de autores brilhantes não seguirem escrevendo, ou mesmo não se renderem à fama etc, coincidentemente assisti a um filme ontem na Netflix, cujo fechamento fala exatamente disso, recomendo: Monsieur & Madame Adelman. Se conseguir ver, me fale o que achou. Bjs
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Eli eu já assisti este filme algumas vezes é muito bom, até recomendei lá no insta do Coletivo porque eu acho que o enredo dele é muito bem construído. A princípio eu não vi a relação, mas depois pensei melhor e lembrei do período em que eles estão separados em diante e como ele míngua junto com sua produção. Muito boa sua conexão.
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Excelente retorno! Ótimo texto, como é habitual.
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Seu texto me lembrou que, há alguns anos, pesquisadoras viraram notícia por requerer a inclusão da menção à maternidade no lattes, como forma de justificar o hiato nas publicações e, assim, não serem prejudicadas.
Eu me permiti uma pausa na literatura para cuidar de outros projetos. Acho que sigo existindo para algumas pessoas.
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Nossa, me lembro disso mesmo. A todo tempo precisamos lembrar que somos seres humanos, não máquinas de produção em grande escala.
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