Há uma crônica do escritor Rubens da Cunha, intitulada O morador das palavras, que começa assim:
“E se ele pudesse morar dentro das palavras? Começou morando na palavra cavalo, gostou de sua elegância paroxítona e desacentuada, de sua quase toda leveza. Ficou morando lá pouco tempo, porque cavalo é também palavra indócil, dada a galopes, a selvagerias. Viu que não podia morar em palavras que designassem animais.”
E a partir daí é tudo lirismo sobre essa busca por uma palavra que dê conta de o abrigar.
Quem gosta de ler é seduzido pelas palavras, seus arranjos, suas minúcias, seus estados de espírito marcados pela companhia da vírgula, exclamação ou reticências. Seu poder de se tornar uma palavra nova quando se casa com outra, seus gracejos mudando de sentido quando escritas com um C ou um S, com um L ou um U.
As palavras são nosso mais poderoso instrumento de comunicação. Foi através delas que muito conhecimento se perpetuou, seja em tabuletas de argila, em papiros, no papel ou em gigabytes que flutuam pelas nuvens virtuais. Palavras são possibilidades.
Para quem escreve, as palavras são criaturinhas melindrosas: às vezes fluem aos borbotões e inundam a página, que precisa ser enxugada, mas às vezes se escondem atrás de sinônimos imprecisos, protegidas pela semântica.
Ao escritor cabe encadeá-las para que ganhem o sentido exato do que deseja transmitir. É um exercício laborioso, porque as palavras não gostam de monotonia. Querem ver-se atadas em frases novas, originais, o que é um grande desafio se considerarmos que o ser humano escreve de forma sistematizada há uns cinco mil anos, mais ou menos.
O livro Comer, Rezar, Amar, de 2009, traz o relato da autora, Elizabeth Gilbert, e como ela superou uma crise pessoal ao enfrentar um divórcio aos trinta anos. Apesar de bem-sucedida, Elizabeth não estava feliz e tirou um ano sabático decidida a se reencontrar.

Uma problemática da história é que são bem poucas as pessoas que podem se dar ao luxo de não trabalhar por um ano todo e empreender uma jornada de autoconhecimento que começa na Itália, passa pela Índia e termina numa paradisíaca Bali. Porém, se a gente tirar essa parafernália geográfica, conseguimos entender os mergulhos que a personagem faz na própria vida para identificar o que não a fazia feliz.
Ouvir seus desejos, dar vazão para a espiritualidade num sentido amplo, e se abrir para as surpresas da vida sintetizam o percurso traçado por Elizabeth, que durante o processo descobriu a palavra italiana “attraversiamo”, que em sentido literal significa “vamos atravessar”, mas, e veja como são traquinas as palavras, também é uma expressão usada com sentido de “vamos arriscar”.
Ao aceitar a imprevisibilidade do futuro, Elizabeth decidiu, como na crônica que abriu este texto, morar na palavra “attraversiamo”, e atravessar de fato sua vida, correr os riscos, e não somente assisti-la ou vivê-la segundo a cartilha de outra pessoa e este é o ponto que faz do livro um best-seller.
Cada etapa na vida de uma pessoa é marcada por desafios, dificuldades, obstáculos, mas também tem sua cota de alegria e beleza. Na maioria dos casos, arrisco dizer, para cada uma dessas situações há uma palavra envolvida: dinheiro, emprego, amor, filho, casa, família, carreira, amigo, sonho, casamento, solidão, sucesso, fracasso… não acaba, o léxico é gigante. Porém, cada palavra em si não diz mais do que seu próprio significado. É como as organizamos, são as frases que construímos a partir delas, que revelam sua importância na jornada.
Conhecer bem as palavras dá o privilégio de saber onde ficam as melhores tocas. Mesmo que pareça difícil encontrar uma capaz de lhe oferecer pouso, ainda será possível erguer a sua bastando seguir os passos de Manoel de Barros, poeta brasileiro dado à transmutação de termos para nomear as coisas sem nome, como “inutensílios”, e daí inventar uma palavra onde se possa então caber. Afinal, como ele próprio escreveu, “o mundo não é perfeito como um cavalo”.
Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.
Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.
No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.
Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini
Excelente crônica!
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Muito obrigada!
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Que belo texto, Monique! Já é o meu favorito entre todos até aqui. Continue nos presenteando com essas maravilhas.
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Interessante, Monique. Acho que estou vivendo na palavra comichão desde que redescobri o poder delas.
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Que palavra inquietante, afeita à surpresas e excitação. É aquele tipo de casa que tem movimento o dia todo 😄 obrigada por topar o desafio! 🤗
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