Uma legião de Sísifos

Geralmente somos ensinados a olhar para o futuro com muitas expectativas. Parece que lá, enfim, será possível encontrar as respostas, decifrar os enigmas. O futuro é o terreno fértil das possibilidades e muito provavelmente é lá que estarão as recompensas pelo esforço ou privações que se vive no agora.

Neste modelo, vivemos divididos entre o que já foi e o que virá, nos afastamos do que passou e apostamos todas as fichas no porvir. Assim, cada fração de segundo que completa a volta no marcador se perde para sempre.

Em 1946, Simone de Beauvoir explorou essa relação no livro Todos os Homens São Mortais, em que o Conde Raymond Fosca e a bela e gananciosa atriz Regine entram num embate onde o desejo dela de ser eternizada e lembrada para sempre é desencorajado por Fosca, que há cinco séculos assiste à humanidade dando voltas em si mesma, repetindo incansavelmente os mesmos erros “em nome do progresso”. Diferente dela, ele quer ser anônimo para sempre.

Regine não aceita a recusa de Fosca de carregar com ele, em sua imortalidade, o nome dela. Ela acredita ser possível provar que é a melhor e, portanto, faz jus à glória eterna. Mas, ao narrar suas aventuras, ele acaba lhe mostrando que a mesquinhez humana é incompatível com qualquer glória pretensamente eterna.

Na verdade, para ele a imortalidade se tornou um fardo, e todos os homens com quem conviveu o menosprezaram tão logo foram confrontados com sua existência além do tempo. A razão deles era turvada pela arrogância e desdém, já que seus grandes atos seriam apenas mais um entre milhões de outros que Fosca já testemunhara.

O livro é bastante denso e traz uma série de eventos históricos associados ao Conde. Ele tenta oferecer seus préstimos e transmitir as lições do passado para os que, no presente, constroem o futuro, mas sempre esbarra na vaidade dos que buscam com um suposto pioneirismo realizar seu premente desejo de glória eterna.

A reflexão que Simone de Beauvoir traz com esta história pode ser colocada em paralelo com o mito grego de Sísifo, o herói que, por afrontar os deuses (há várias versões dessa afronta), foi condenado a empurrar, pela eternidade, uma rocha até o alto de uma montanha. Porém, assim que chega ao topo, a rocha rola morro abaixo e ele precisa começar tudo outra vez.

A eternidade de Sísifo não era um lugar glorioso, tão pouco seu futuro mostrou-se jubiloso. Identificado nas lendas como um homem astuto, ele não buscou viver bem com o que tinha, mas sim adiar sua morte e afinal conseguiu, mas não podermos afirmar que valeu a pena.

Vivendo somente para o que está adiante, desprendidos do presente, desconsideramos que os erros do passado são, na verdade, as faltas que acabamos de cometer no minuto que passou. Assim, conduzimos sem questionar, a rocha de expectativas para cima da montanha, de onde ela sempre terminará rolando, para que lá de baixo, na frustração, a gente volte a empurrá-la.

Mas não somos Sísifo, nem Fosca, somos Regine confrontados constantemente com nossa finitude. Por isso sempre haverá espaço para que a gente pare e se pergunte: por que fazemos, o que fazemos?

Claro que é importante ser previdente, ter planos, mas nosso presente não pode ser estrangulado pelo que está tão longe. Hoje, há pessoas ao nosso redor a quem amar, há experiências a se viver e memórias a construir, há risadas e coisas a desfrutar. Viver talvez, seja muito mais se equilibrar do que empurrar uma rocha de expectativas morro acima, ignorantes do que nos aguarda no topo.

Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.

Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.

No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.

Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini

3 comentários em “Uma legião de Sísifos

  1. Esse texto mexeu muito comigo. A autora traz, como de praxe, esse olhar refinado sobre como a literatura converge com nossa vida cotidiana. Excepcional! Sou fã.

    Curtido por 1 pessoa

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