Quem se arrisca a falar com o Tempo

Dia desses circulava pela rede uma pergunta, algo como: você sente que as pessoas a sua volta fazem muito mais coisas que você? E esse pensamento assim, individualizado, mostrou que na verdade essa é uma questão bem coletiva, porque isso já me passou pela mente e de repente vi muitas pessoas compartilhando a questão.

Ao matutar sobre essa relação desafiadora dos nossos tempos, que é a de arranjar tempo para fazer tudo o que a gente gostaria e que o mundo nos oferece, imaginem, lembrei de um livro.

Não um livro deste nosso tempo, mas um livro já bem antigo. Não um livro que fala sobre a questão do tempo em si, mas sobre uma brecha no mundo que esconde um outro mundo, de coisas ao contrário, onde crescer e diminuir é uma questão de escolha, onde são os dias sem aniversário que se celebram, onde cabeças são pouco valorizadas (bem, nisso se parece um pouco com o nosso), onde lagartas são sábias e gatos são guias.

É no capítulo sete das aventuras de Alice no país das maravilhas, livro de Lewis Carroll, que ela trava com o Chapeleiro um diálogo muito interessante e maluco, como convém à obra:

“– Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu – disse o Chapeleiro – falaria dele com mais respeito.

– Não sei o que quer dizer – disse Alice.

– Claro que não! – desdenhou o Chapeleiro, jogando a cabeça para trás. – Atrevo-me a dizer que você nunca chegou a falar com o Tempo!

– Talvez não – respondeu Alice cautelosa, – mas sei que tenho de bater o tempo quando estudo música.

– Ah! Isso explica tudo – disse o Chapeleiro. – Ele não suporta apanhar. Mas, se você e ele vivessem em boa paz, ele faria praticamente tudo o que você quisesse com o relógio.”

A disseminação de máximas como “trabalhe enquanto eles dormem”, ou qualquer outra loucura que insinue que as pessoas não precisem de descanso, tem valor bastante questionável ao sugerir que o tempo é um espaço a ser preenchido laboriosamente e não um recurso para ser usado com zelo.

Além disso, a culpa que decorre disso é algo tão latente que as pessoas estão adoecendo de exaustão, o trabalho, o happy hour, a exposição, a feira de orgânicos, a academia, a série do momento, os filmes indicados ao Oscar, os livros mais vendidos, os cursos, a terapia, o relacionamento, o gato que é quem manda e, pelos céus, manter tudo isso devidamente apontado na rede social. Seria de estranhar se não adoecessem.

É claro que é preciso alguma organização, afinal a vida adulta se apresenta com uma pilha de boletos numa mão e uma agenda na outra com hora marcada para o dentista, para o médico, para a reunião, para as férias. No entanto, cabe a nós decidir se é indispensável preencher todos os intervalos, esgarçando o tempo só para ver até onde ele aguenta.

E se, ao invés de querer dar conta de tudo, as pessoas fizessem uma lista do que é possível fazer, ou mesmo uma lista do que precisa ser feito prioritariamente, ou então uma lista de coisas que gostam e que não fazem porque estão fazendo o que todo mundo faz?

E, digo mais, e se a preocupação em fazer o que todo mundo faz fosse tirada da nossa lista de afazeres? Quem de nós se arriscaria a falar com o Tempo da sua vida?

Aos sete anos, a menina que conheceu o outro lado do mundo mergulhando numa toca de coelho aprendeu de maneira bem inusitada uma lição sobre o tempo. Não adianta brigar com ele, melhor é manter as boas relações e assim usufruir de sua boa vontade.

De fato, Alice abriu mão de alguma diversão quando se deu conta de que perdera tempo tentando desvendar um enigma sem resposta, ora essa, o que afinal um corvo e uma escrivaninha poderiam ter em comum?! Mas, se isto de perder tempo, não tivesse acontecido, ela não teria conhecido um pouco mais aquele que viria se tornar seu grande amigo, o Chapeleiro. Então, pensando bem, investir tempo ganhando um amigo talvez não tenha sido tão mau negócio assim.

Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.

Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.

No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.

Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini

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