As coisas que estão no mundo não podem voltar para os sonhos

Uma das forças que nos move é a inventividade. Em nossa breve passagem pelo planeta já transformamos a paisagem, interferimos diretamente na existência de outras espécies e despejamos resíduos até no espaço.

Percebe-se então que a inventividade é uma via de mão dupla: aprendemos a controlar o calor, plantar nosso alimento, produzir derivados e interferir no meio ambiente para nosso conforto e locomoção, mas de outro lado agredimos a natureza, aumentamos o nível de poluição. Há inclusive uma ilha de plástico se formando no oceano, e ameaçamos de extinção animais que equilibram a cadeia alimentar, de abelhas a elefantes.

E parte deste poder de inventar concentramos na forma como contamos sobre nossa existência, afinal o ser humano é o único animal que lê e escreve. Neste sentido, apesar de ter desenvolvido venenos para proteger sua plantação e matar quem atrapalhe seu progresso, o homem também criou uma máquina do tempo, não para interferir no passado ou futuro, mas sim para aprender com eles: os livros.

Um bom exemplo disso é O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk, publicado pela Companhia das Letras e que conta a história de uma menina indígena levada para ser exposta na Europa, numa época em que estas bandas eram novidade para o mundo.

Nele há uma desconcertante passagem aludindo ao tamanho da arrogância que alguém pode atingir ao descrever o que não conhece:

O temperamento do índio quase não se desenvolveu e pode ser qualificado de fleumático. Todas as potências da alma, mesmo a sensualidade mais nobre, parecem achar-se em estado de entorpecimento. Sem refletir sobre a criação universal, sobre as causas e a íntima relação das coisas, vivem com o pensamento preocupado só com a conservação própria. Passado e futuro quase não se distinguem para eles, daí não cuidarem nunca do dia seguinte.”

 Supondo que só há uma maneira de ser inventivo e estar no mundo, o cientista da história esquece de lançar em seu relato a comunhão com o ambiente com que os indígenas viviam, sua vida sem ansiedade e futilidades e o respeito com tudo ao redor como componente de um todo de que se é somente parte.

Embora seja uma história inventada, ela trata de um passado palpável cujas consequências críticas são bem atuais. E isso me trouxe à mente uma outra história chamada Floresta é o nome do mundo, de Ursula K. Le Guin, lançada pela Morro Branco.

A autora deste livro não recria o passado. Ela inventa um planeta novo, com toda uma nova configuração no futuro, e que é habitado por homenzinhos peludos e verdes vivendo espalhados pelas árvores que dominam a paisagem deste lugar que está há 27 anos-luz de distância da Terra.

O mote da sua invenção é o consumo predatório de recursos naturais para a subsistência humana. Ao descobrirem este novo planeta, os humanos, que dispõem de avançadas tecnologias e estão armados até os dentes, o invadem estabelecendo ali uma Colônia, subjugando os homenzinhos verdes, inofensivos por natureza.

Porém, um destes homenzinhos desenvolve um vínculo com o ecologista a quem servia de escravo e objeto de estudos e acaba por aprender a língua e as motivações humanas no seu planeta e, numa reviravolta, se rebela de forma violenta. Ao se dar conta do que está acontecendo, o ecologista reflete:

“Não sei o que é “natureza humana”. Talvez deixar descrições daquilo que exterminamos faça parte da natureza humana…”

Já o rebelado, confrontado por sua atitude, devolve:

“Às vezes um deus vem – disse Selver. – Ele traz uma maneira nova de fazer alguma coisa, ou algo novo a ser feito. (…) Quando faz isso, está feito. Não se pode pegar as coisas que existem no mundo e tentar levá-las de volta para o sonho. (…) Não adianta, agora, fingir que não sabemos como matar uns aos outros. (…) Talvez depois da minha morte as pessoas sejam como eram antes de eu nascer e antes de vocês virem para cá. Mas acho que não serão.”

Em O som do rugido da onça, a autora também nos coloca diante do olhar da menina indígena desenraizada:

“Ela viu povo morrendo de disenteria. Morrendo de gripe e de descuido. A sarna do branco sujando a pele dos parentes. Não existe nem remédio de branco nem folha nem macerado de tabaco que sejam capazes de curar doença de branco, ãn-ãn.”

Em ambas as histórias o paralelo com a realidade é inevitável, assistimos a eventos climáticos cada vez mais extremos e devastadores que são noticiados com a naturalidade desconcertante com que se noticiou lixo espacial atingindo a lua[1] e com a passividade com que se noticiam assassinatos de indígenas em seus próprios territórios a mando de garimpeiros e fazendeiros[2].

O poder de inventar histórias nos coloca em cenários inéditos e nos permite enxergar outras maneiras de existir. Estes escritores que revisitam o passado e que viajam no futuro são visionários que nos oferecem uma alternativa à realidade, apresentando soluções criativas para problemas reais. Aprender com esta máquina do tempo é cada vez mais urgente. Não há como mudar o que está no mundo, mas ainda é tempo de sonhar uma outra possibilidade para ele.


[1] Acesse: https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2022/03/pedaco-desgovernado-de-um-foguete-caiu-na-lua

[2] Acesse: https://www.google.com/amp/s/oglobo.globo.com/brasil/brasil-tem-maior-numero-de-indigenas-assassinados-em-25-anos-25255543%3fversao=amp

Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.

Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.

No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.

Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini

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