Uma chama não perde nada ao acender outra chama

Uma chama não perde nada ao acender outra chama” é um provérbio africano que está na dedicatória com que Ana Maria Gonçalves abre seu livro, Um defeito de cor, lançado pela Editora Record em 2006 e que nos ajuda a refletir sobre privilégio.

Este emblemático romance narra a vida de Kehinde, uma heroína épica que ainda menina é sequestrada junto da irmã e da avó na costa da África e trazida para o Brasil colônia como mercadoria a bordo do famigerado tumbeiro, fazendo-nos mergulhar no cotidiano de uma mulher que teve o corpo escravizado, mas manteve a alma livre.

O livro de fundo histórico se refere a personagens reais e momentos marcantes na passagem do Brasil de colônia para nação independente e também traz notas sobre costumes da época, um panorama da capital e algumas das principais cidades do período, além de vastíssimo conteúdo sobre a cosmogonia das religiões de matriz africana. Tudo narrado de forma envolvente e leve, que nos faz realmente viajar na leitura.

E, muito embora exista o prazer de estar diante de um bom livro, é impossível não sentir as dores da protagonista, uma mulher negra que precisa se agarrar com todas as forças na lembrança de quem é antes de ser uma escravizada. Seu desenraizamento, a violência ao seu corpo, o esmagamento de sua dignidade, o impedimento da sua maternidade, são algumas das sombras que nublarão para sempre a possibilidade de uma felicidade completa apesar de toda sua luta.

(…) “e só foi um pouco antes de me encostar em uma parede e quase desmaiar de cansaço que percebi que a proximidade com eles era outra coisa, não tinha nenhum laço de fé religiosa, mas de fé na liberdade e na justiça. Essas duas palavras, junto com igualdade, eram as preferidas do Fatumbi e de seus amigos, e acho que não há quem não goste delas.”

E foi relendo o trecho acima, pensando neste desejo de igualdade e no quanto liberdade e justiça na nossa sociedade atual parecem muito mais um privilégio do que um direito, que percebi a imensa conversa desta história com a de uma outra mulher preta, essa real, Carolina Maria de Jesus, que nos oferece em Quarto de despejo as entradas do seu diário de catadora de lixo que sonhava ser escritora e morar numa casa de alvenaria.

A história da moradora da antiga favela do Canindé, em São Paulo, que assim como Kehinde experimentou um verdadeiro calvário, também se assemelha àquela pela fibra com que nunca deixou de acreditar em sua verdadeira vocação para narrar suas histórias e da sociedade à sua volta, e suas muitas transformações.

Catando palavras em meio às migalhas com que sobrevivia junto dos filhos, Carolina registrou tudo que se passava em sua vida. Uma experiência dolorida, mas que, de alguma forma ela sabia, seria a chave para conquistar um teto sobre paredes de tijolos.

Carolina narrou a pobreza, a ignorância, o abandono pelo poder público e o peso da maternidade. A realidade que ela descortina esbarra no absurdo e gera revolta quando realizamos que tantos anos depois este país tem cada vez mais favelas e pessoas sem acesso à educação, moradia, alimentação e cultura. Em 1958, ela escreveu “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!

Kehinde se libertou e prosperou. Carolina Maria de Jesus, libertada pelas palavras, morreu numa casa humilde, porém própria, longe da favela. Mas histórias com finais assim são bem menos comuns do que se gostaria. Pelo Brasil, as Carolinas em quartos de despejo devem haver aos montes, lutando para criar os filhos sozinhas, escravas da fome.

Enxergar a vida das mulheres pretas é se situar no privilégio, dar voz a elas é reparação histórica, ouvi-las é permitir que o privilégio de ter uma história própria também seja delas. Nada perde a sociedade que compartilha a chama da igualdade, da liberdade e da justiça.

Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.

Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.

No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.

Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini

5 comentários em “Uma chama não perde nada ao acender outra chama

  1. Já coloquei o livro na minha lista, Mo. Obrigada pela dica!
    O da Carolina li duas vezes, é dilacerante. E, como vc disse, uma mulher negra que morreu pobre e sozinha, apesar de ter ficado famosa com o livro. Antes de ir à exposição sobre a Carolina no IMS este ano, eu só conhecia essa obra dela, mas ela foi uma artista muito mais que isso, uma mulher admirável. Parabéns pelo texto, querida. Bjs

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    1. Vou te mandar um podcast muito legal sobre ela. O pesquisador busca romper uma certa narrativa para mostrar que a aspiração de Carolina sempre foi escrever e ser reconhecida por isso e não apenas por sua biografia.

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  2. Esses são dois livros que quero muito ler. Atualmente, tô lendo Água de Barrela que, assim como Um defeito de cor, é um romance histórico. É o tipo de história que deveria ser repetida à exaustão no debate público para que nunca caia no esquecimento.

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