A fantasia ao serviço da tolerância

Ler A História sem fim e Harry Potter para um mundo melhor

A autora britânica Rosalind Jana escreveu num artigo: “To read is to exist in two places at once.” (Ler é existir em dois lugares ao mesmo tempo, em livre tradução). Como leitora, não posso discordar e ainda acrescento: essa dupla existência torna muitos leitores pessoas mais tolerantes.

Somos produtos do nosso meio e reflexos dos valores recebidos durante a criação, dos ambientes onde fomos educados e das outras pessoas com quem convivemos. E nesta bagagem recebemos também uma série de preconceitos que, em alguns casos, são transmitidos mesmo involuntariamente. Por tudo isso, ler livros de fantasia é fortalecer um importante aliado na promoção de uma sociedade mais tolerante.

Os livros de fantasia costumam ser ambientados em lugares inteiramente novos para nós. O escritor cria todo um aparato cultural, social e de costumes que desconhecemos e mesmo as personagens, embora possam possuir características humanas, incorporam atributos inalcançáveis na vida real. Mergulhar numa leitura assim exige da nossa imaginação uma entrega completa ao ato de construir o outro e o lugar onde ele habita.

O clássico livro A História sem fim, escrito em 1979 pelo alemão Michael Ende, é um bom exemplo da reunião de todos estes aspectos. No enredo, o menino Bastian rouba um livro e descobre que o Reino de Fantasia corre perigo. A primeira parte da história apresenta este reino onde gigantes de pedra caminham ao lado de homenzinhos verdes e dragões etéreos como nuvens que fogem da destruição que os ameaça para junto da Imperatriz Criança que os governa.

Já na segunda parte, Bastian descobre que terá uma função importante na história e acaba indo parar em Fantasia, onde desempenhará um papel de grande responsabilidade para salvação daquele lugar repleto de tudo que a inventividade humana é capaz de criar.

Nesse ambiente repleto de criaturas e paisagens excepcionais o menino amadurece, percebendo que não são suas preferências e desejos que estão em jogo, mas sim uma infinidade de seres e lugares que deixarão de existir se ele não trabalhar com sua imaginação em favor deles, resgatando Fantasia do seu fim. Uma construção metafórica que se presta a mostrar tudo o que se arrisca deixar morrer ao supor que sua vida não nos diz respeito.

O impacto positivo que este tipo de leitura promove foi avaliado por um grupo de pesquisa que reuniu cientistas das Universidades de Modena e Régio Emília, Padova e Verona, na Itália, e Greenwich, na Inglaterra. O estudo em três etapas demonstrou que jovens leitores da saga Harry Potter apresentaram mais tolerância e ampliaram suas percepções sobre grupos estigmatizados, como homossexuais, imigrantes e refugiados[1].

A saga retrata a luta entre os bruxos que convivem em harmonia com o mundo dos trouxas (mundo dos não bruxos, mas onde eventualmente podem nascer bruxos), contra os bruxos que acreditam que a magia os torna superiores e, por isso, encarregados de manter a pureza da raça pela eliminação de quem não tem origem no mundo mágico.

Harry Potter é a esperança do mundo bruxo que convive pacificamente com as diferenças e, quando ele descobre seu destino se fia na amizade com Rony, um bruxo humilde e Hermione, uma exímia bruxa nascida trouxa, para o ajudar na sua jornada.

No decorrer dos sete livros que compõem a saga, a tensão pela proximidade da guerra cresce junto com os três bruxos que ainda precisam lidar com as questões próprias da sua idade. A mensagem da prevalência do interesse coletivo sobre o privado, da igualdade entre os seres e da tolerância entre os povos é subliminar, mas o mundo criado por J. K. Rowling é tão verossímil que tudo ali parece, de fato, muito possível ainda que seja “apenas” uma história num livro.

 Ao mostrar como um grupo alvo de propaganda fanática passa a ser o bode expiatório para justificar uma guerra, a trama revela que não é só a liberdade daquele determinado grupo que está ameaçada, mas também a de todos que não concordam com sua perseguição.

Os fanáticos que acreditam que sua descendência e valores são os únicos que merecem existir estão dispostos a tudo para fazer prevalecer sua crença. Ao derrotá-los, Harry, Rony e Hermione não salvam apenas os nascidos trouxas, mas a liberdade de todo o mundo bruxo para ser exatamente como é, respeitando a multiplicidade de seres que ali habitam.

As coisas que lemos vestidas de fantasia nos dão o benefício do olhar sem preconceito, pois só existem para nós tal qual o autor as concebeu. Livre do estereótipo e de um código moral pré-estabelecido que nos contamine, nosso senso de justiça se guia pela conduta daqueles que nosso cérebro foi ensinado a acolher, através da imaginação, exatamente como são.

Em tempos que se propaga a liberdade de defender absurdos, podemos encontrar na fantasia a fórmula que falta à realidade para promover uma sociedade mais tolerante, que respeite todos os seres que coabitam no mesmo espaço, nos libertando de referenciais homogeneizantes que não levam em conta todo o universo que cada um é capaz de carregar em si.


[1] https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/jasp.12279, disponível em 14.02.2022

Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.

Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.

No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea, Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.

Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini

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