A pediatra, Memórias do Subsolo, Desonra e a empatia como ferramenta de leitura

Recentemente lançado pela Companhia das Letras, o livro A Pediatra, de Andréa Del Fuego, tem conquistado muitos leitores que adoram a história, mas fazem questão de destacar que a figura da protagonista é detestável e não desperta nenhuma empatia.

Cecília é uma pediatra sem vocação, avessa à crianças, cercada de privilégios de classe, que trata a empregada doméstica com desprezo e se envolve numa relação bastante duvidosa.

O breve sumário da protagonista revela de onde vem o desconforto que alguns leitores sentem em abraçar seus conflitos. É que ler implica estabelecer um diálogo entre o que está escrito e nosso repertório. Sendo assim, é mais fácil acolher as dores de alguém a quem somos simpáticos do que o contrário.

No entanto, é comum na literatura personagens que despertem sentimentos ambíguos, onde o odiar e amar é assim, tudo junto. E certamente o autor que opta por um protagonista antipático pretende alguma coisa com isso.

Em Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoiévski, um funcionário público aposentado, mergulhado em ressentimento e frustração, quer provar que todos nós somos uns iludidos com a vida e indulgentes com a hipocrisia. Sua trajetória é relatada mostrando como levou a cretinice às últimas consequências protegido por regras sociais de valor duvidoso.

Este subsolo, de onde agora ele vive e relembra o passado, pode ser entendido como uma metáfora que ilustra como todos temos, ainda que escondido bem lá no fundo, um ângulo de onde não somos tão bons. Nem todos os dias levamos uma vida tão correta ou justa e nem sempre agimos com compaixão ou generosidade com o próximo.

A crítica social está evidente na narrativa, por isso a empatia desperta gradualmente à medida que a leitura avança e vamos entendendo o cenário.

Diz-se que a empatia é a capacidade de se colocar no lugar de outra pessoa buscando agir ou pensar da forma como ela pensaria ou agiria, tentando entendê-la.

Mas este é um exercício difícil quando enfrentamos o livro Desonra, de J. M. Coetzee. Na história, David Lurie é um professor do nosso tempo que desperta o que há de pior em nós.

Ao deslocar a figura professoral, a obra rompe de saída o estereótipo do mestre. Em certo ponto inclusive, o protagonista defende que sua profissão serve mais a si próprio do que aos alunos, assumindo a partir daí uma série de contravenções que não o previnem para o fato de que outros também romperão com pactos em que ele acreditava, criando uma atmosfera de pesos e contrapesos do que é certo e para quem.

Passamos a leitura revirando os olhos para o machismo, a atitude preconceituosa e cheia de empáfia da personagem que, presa em suas ideias ultrapassadas, não reconhece seus erros e tampouco enxerga a necessidade de reavaliar os seus valores e o da nova sociedade que está emergindo à sua volta. Porém, assumir que ele teve o que mereceu é condenar outras personagens que nada têm a ver com os erros de Lurie, ou seja, somos obrigados a olhar a história sob todos os ângulos, inclusive o dele.

Parece então que a leitura onde há simpatia pelos personagens não demanda de nós uma conexão real com o conflito, enquanto a leitura que exige nosso olhar empático pressupõe um esforço genuíno para compreender a dor do outro.

E é este esforço que nos transforma através da leitura. Pois é a ferramenta que nos permite enxergar a trama pelos olhos de quem está no centro dela.

Quando nos afastamos de critérios que idealizam a figura do outro, com a qual tendemos a ser rigorosos e experimentamos o olhar empático, não significa que concordamos ou justificamos as personagens, mas que nos abrimos para enxergar o mundo com seus olhos.

Assim, vivenciamos através da ficção aquilo que nos parece reprovável, aprendendo mais sobre nós e como julgamos os demais. Entendemos porque algumas pessoas se comportam como se comportam, ampliamos nossa capacidade de compreender o outro e o mundo à nossa volta.

Autora

Monique Bonomini é de Poá/SP e tem graduação em Direito e História.

Atua como revisora e leitora crítica e dedica-se ao estudo do feminismo. Apaixonada por livros, mantém sua página no Instagram com impressões de leitura.

No Medium publica outros textos autorais. Publicou um desafio no livro Vida de Escritor, lançado pela Lura Editorial em 2021 e tem um conto na coletânea, Um conto de tudo, lançado em 2022 pela Têmpora Criativa.

Nas redes: @moniquebonomini
Site: linktr.ee/moniquebonomini

2 comentários em “A pediatra, Memórias do Subsolo, Desonra e a empatia como ferramenta de leitura

  1. Gostei do seu ponto de vista. Ano passado, participei de um debate sobre O morro dos ventos uivantes e a alguna dos presentes odiaram o livro por causa dos personagens. Então começamos a discutir sobre leitura e empatia, sobre como uma obra pode ter valor mesmo com personagens mesquinhos, e que quantas reflexões sobre a natureza humana podemos tirar de suas atitudes. Livros assim sempre são boas viagens.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Que demais saber disso Lícia, gosto de pensar que este texto é um eco dos debates coletivos que tem ganhando tanto território. De fato, se tem um personagem difícil na literatura que exige nossa empatia é Heathcliff. Obrigada por trazer isso!

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